Mulato bamba
Noel Rosa
Esse mulato forte é do Salgueiro
Passear no tintureiro era seu esporte
Já nasceu com sorte
E desde pirralho vive à custa do baralho
Nunca viu trabalho
E quando tira samba é novidade
Quer no morrro ou na cidade, ele sempre foi o
Bamba
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher
O mulato é de fato
E sabe fazer frente a qualquer valente
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita
Sei que ele anda agora aborrecido
Porque vive perseguido sempre a toda hora
Ele vai-se embora
Pra se livrar do feitiço e do azar
Das morenas de lá
Eu sei que o morro inteiro vai sentir
Quando o mulato parir dando adeus para o
Salgueiro
As morenas vão chorar, vão pedir pra ele voltar
Ele então diz com desdém
“Quem tudo quer, nada tem!”
SOBRE O SURGIMENTO DO CHORO
O surgimento do choro no Brasil data do sáculo XIX, quando foi importada da Europa, pela classe média, a polca. No Rio de Janeiro, a partir de 1980, músicos populares já adicionaram ao som um tom lamentoso (daí o nome de choro). Segundo Dias, a transnacionalidade do choro dá-se através da hibridez dos gêneros musicais e a transnacionalização tem a ver com a semelhança com a música barroca.
A princípio, o choro apresentou influências marcantes de danças européias, como a polca, a valsa, scottisches. A adaptação desses sons, no que tange não só à improvização e virtuosidade dos músicos, mas também à implementação de inflexões e modulações melancólicas, é que começou a definir o gênero. Porém o ritmo, também marcado por uma intensa movimentação do baixo, não foi criado para dançar. O choro deve ser cantado nas chamadas “rodas de choro” ou em apresentações excepcionais, por exceção, como bem fazia a cantora potiguar Ademilde Fonseca, considerada por mais de vinte anos como a “rainha do choro”.
Entretanto nos seus primórdios, ainda na forma de maxixe, as danças executadas no Palácio do Catete (moradia do presidente da república na época), no início do século XX, costumavam escandalizar os expectadores mais pudorosos. Em 1914, o senador Ruy Barbosa escreveu ao presidente a respeito do “Corta-jaca” (alcunha do maxixe “Gaúcho”, da compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga):
Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da
recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da
mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao
país o exemplo das boas maneiras mais distintas e dos costumes
mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição
social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que
vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais
grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do
cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca
é executado com todas as honras de Wagner, e não se quer que a
consciência desse país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam
e que a mocidade se ria!
Nos séculos XIX e XX, sob fortes influências do músico Pixinguinha, o choro consagrou-se como um dos principais gêneros musicais brasileiros, sendo muito tocado nas grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. Inicialmente o chorinho conservou seu caráter popular, porém com o passar do tempo ganhou ares de erudição e influenciou na produção de compositores brasileiros eruditos como Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, entre outros. Tudo isso sem abandonar sua raiz popular brasileira, tornando-se a matriz harmônica e formal de nossa música instrumental.
Até a década de 1920 o choro era caracterizado por ser uma forma de tocar, não como um estilo musical, como é considerado atualmente.
Assim como no samba, no sertanejo de raiz e em outros estilos musicais bastante difundidos no brasil, o choro tem seus personagens e heróis. O compositor considerado o “rei dos chorões” Joaquim Antônio da Silva Callado, autor de quase 70 melodias, é elogiado por Diniz (2003, p. 15):
Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular
na cidade do Rio de Janeiro, Joaquim Callado era “filho da primeira
geração do choro”. Ao seu lado estavam Viriato Figueira, também
flautista e saxofonista, Virgilio Pinto, compositor e instrumentista,
e o flautista Saturnino, entre outros músicos que ajudam a criação
do choro.
Entre os sucessos de Callado encontramos “A flor amorosa”, reconhecida como a primeira canção do choro. Assim o ano de 1977, através desta música composta a partir de um lundu e que ficou conhecida como uma dos clássicos do gênero, marcou defitivamente a história como data simbólica de nascimento do choro.
Entre outras personalidades do chorinho é importante citar Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Ary Barroso, Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnatalli. Falar sobre a obra e influência de cada um exigiria muito mais que um blog. A importância destes músicos na formação do cenário musical da cultura brasileira chega a fugir do léxico.
Deve ser o meu amor
Ary Barroso
Ouço a batida de um tambor
No compasso do pandeiro
Deve ser o meu amor
Batucando no terrreiro
Meu amor quando samba
Ninguém dá opinião
Tem diploma de bamba
Põe os pés no coração
Meu Deus do céu
Ele é meu de mais ninguém
E eu dele também
E assim o nosso amor não tem fim
UM POUCO SOBRE O RIO DE JANEIRO NO SÉC. XX
Durante a primeira república brasileira, no auge de grandes mudanças culturais que o Brasil atravessava, houve uma participação expressiva de negros e mulatos,não apenas como consumidores e/ou expectadores, mas também como produtores e divulgadores dessa nova cara que o país mostrava ao mundo. Eles vinham de camadas intermediárias da população carioca, massacrados pelas elites e classes médias brancas por um lado, e por outro pela enorme quantidade de ex-escravos e migrantes, que dirigiam-se às grandes cidades em busca de melhores condições de vida. Essa cultura produzida por negros e mulatos, sobretudo a música, ultrapassava os espaços privados e chegava até as salas das “casas de família”,onde antes a presença negra limitava-se à cozinha.
Entre os novos espaços da música popular podemos destacar a nascente indústria fonográfica que produziu, em 1902, os primeiros cilindros e chapas comerciais do país. Inicialmente de alto custo, logo tornaram-se acessíveis a boa parte da população carioca, já que nessa primeira fase os fonógrafos podiam ser escutados através de um sistema semelhante ao da juke-box, acionados por uma moeda. Esses mecanismos eram dispostos em lugares de ajuntamento público.
As músicas gravadas também se popularizavam ao serem reproduzidas nas ruas, tocadas em bares, teatros, além de lojas especializadas na venda de produtos musicais, que nessa época exerciam influência relevante no comércio e consumo dessas formas simbólicas de transmissão cultural.
Em equivalência ao piano nos espaços domésticos, as bandas militares ocupavam as ruas. Essas agremiações foram responsáveis, no Brasil, assim como em outros países, pela distribuição massiva de novas facetas culturais advindas das camadas populares. Além de divulgar gêneros poucos difundidos a um grande número de pessoas (maxixe, polca, etc) essas bandas (nem sempre militares) eram também escola de formação a diversos músicos oriundos das camadas sociais mais pobres. Numa dessas escolas de formação do Rio de Janeiro, Pixinguinha era professor de música e diretor de banda.
PIXINGUINHA
Alfredo Vianna da Rocha Filho nasceu no dia 23 de abril de 1987, filho de Raimunda Maria da Conceição e Alfredo Vianna da Rocha, no Rio de Janeiro. Pixinguinha pertencia à baixa classe média carioca e seu pai era flautista amador, contribuindo posteriormente à divulgação do choro com seu grupo também amador.
Quando criança aprendeu a tocar cavaquinho, flauta e aos 11 anos já acompanhava seu pai nas rodas das festas de família. As rodas de choro, conhecidas como pau-e-corda, em alusão aos instrumentos que a compunham (flauta, violão e cavaquinho)foram grandes responsáveis pelas rodas de dança no Rio.
A entrada no mercado não tardou a ocorrer. Aos 14 anos Pixinguinha já atuava nas casas de chope da Lapa e em cabarés. Uma curiosidade é que nesses ambientes a música não servia mais apenas para a dança e as pessoas a apreciavam por puro deleite estético, até então privilégio das músicas de concerto.
Muitos autores apontam que Pixinguinha conseguiu fazer uma ponte entre o erudito e o popular, mas cabe defender que ele não dominava a linguagem erudita, nem tampouco aspirava à glória. O que o diferencia dos demais é tão somente sua escuta singular, ampla, que incorporava intuitivamente diversas tradições.
Embora vários artistas tenham se destacado no choro, foi Pixinguinha e sua geração, que com sua nova linguagem, sintetizando a “música para dançar” com a “música para escutar”, conseguiu fundir diversos elementos que se encontavam dispersos nas gerações anteriores.
UMA ANÁLISE SOBRE A CULTURA
Sobretudo no começo do século XX o Brasil passava por um processo de descoberta de uma identidade nacional. O povo precisava de algo que os diferenciasse dos europeus ou de outros povos que influenciaram a formação etinica brasileira (com migrações, etc.). Algo autenticamente nosso e que nos unisse como nação.
A princípio o interesse pelo popular encontrou barreiras construídas pelo preconceito e por falsas teorias sobre a miscigenação (nossa principal diferenciação), que a julgam o mal responsável por um suposto “atraso cultural” e degeneração racial.
Algumas décadas mais tarde veríamos essa busca por uma identidade itensificadas por uma manifestação e interesse generalizados por manifestações culturais negras e mestiças, em especial a música. O negro e o mestiço que antes eram um problema, passam a ser a solução, como um elo de ligação para a sustentação da sociedade.
Nesse quadro,vemos surgir o choro, no início ainda bem carregado com elementos europeus, mas que aos poucos, com o empenho de fabulosos artistas e a aceitação do público como música popular (não popularesca) ganha espaço no que hoje já se convencionou chamar de música tipicamente brasileira.
Juntamente com o samba e a música de raiz, o chorinho integra essa seleção musical que pretende construir o imaginário cultural brasileiro. Longe dessa classificação simplista, seguimos tecendo, apanhando os elementos do nosso passado, juntando aos do presente, para formar essa complexa tessitura que chamamos cultura brasileira.